Símbolos de fé tão diferentes, lado a lado, num mesmo lugar sagrado.
E essa luz de milagre entrando pelas janelas. É uma sensação que eu nunca tinha sentido e que, provavelmente, não vou sentir de novo nessa vida. Nem você.
A Santa Sofia tem mais de 1500 anos de história, foi construída como basílica pelos bizantinos, depois transformada em mesquita pelos otomanos que cobriram as imagens cristãs e instalaram enormes medalhões com inscrições islâmicas no lugar. Em 1935, a cobertura das imagens foi removida, os medalhões mantidos e a mesquita se tornou um museu, por ordem do fundador da república turca, que tinha uma mentalidade muito mais avançada do que os atuais governantes.
Eu pisei em terras turcas pela primeira vez em 2011 e o impacto dessa viagem foi tão forte que fez nascer um projeto de vida: quebrar paradigmas e visões estereotipadas sobre outras culturas, assim como aconteceu comigo na Turquia e em todas as viagens que eu fiz depois dela.
Estar em contato com uma cultura tão diferente e, ao mesmo tempo, tão parecida, fez com que eu me sentisse bem vinda quase como se estivesse em casa e, ao mesmo tempo, deslumbrada com uma enxurrada de novos aprendizados.
A Turquia me fez rever e corrigir minha visão sobre o que eram “os países islâmicos”, como se fosse possível colocá-los todos numa mesma caixinha.
Conforme eu ia descobrindo as ruas, lojas e casas em Istanbul e nas cidades menores, comecei a reparar em uma imagem que repetia pra tudo o que é lado, em quadros, molduras, estátuas, cartazes, bandeiras. Era Mustafa Kemal Atatürk, presidente o fundador da república que eu mencionei lá em cima. Ele morreu em 1938, mas revolucionou o país de uma tal forma que é celebrado até hoje. Na minha mente brasileira, com as convicções políticas que eu tenho, uma adoração tão intensa a um presidente não faz sentido. Mas naquele contexto sim.
Quando voltei em 2013, em um dos passeios mais marcantes que eu fiz, questionei nossa guia sobre o motivo de tamanha reverência a um político. Ela me respondeu dizendo que se ela podia estar ali, trabalhando sem depender de pai ou marido, se ela podia usar as mesmas roupas que eu, sem ser obrigada a se cobrir, se ela sabia ler, tinha acesso à cultura e a outros direitos com os quais as mulheres antes se quer sonhavam, era por causa dele. Com um tom de voz entristecido, ela me contou que o então governo não estava exatamente interessado em preservar todas essas conquistas.
Na última vez que estive em Istambul, em 2018, ficou claro pra mim o efeito das ações do atual presidente, que aliás, está no posto desde 2014, mas atuou como primeiro ministro por muitos anos antes disso. A mudança era visível pra mim, principalmente na forma das mulheres se vestirem. Os lenços e roupas longas que eu quase não via entre as turcas da minha idade, principalmente nas cidades maiores, agora estavam por toda parte. Se cobrir para andar em público continua não sendo obrigatório na Turquia. Mas a primeira dama e suas filhas se cobrem. Virou tendência.
Também notei a construção de novas mesquitas gigantescas, custeadas com dinheiro público, em uma cidade que já tem cerca de 3.250 mesquitas. Em 2020, a Santa Sofia se tornou mais uma. O piso milenar coberto por um tapete, os cabelos das mulheres cobertos por lenços, os mosaicos cristãos – que antes eram expostos ao lado dos incríveis medalhões islâmicos – cobertos por panos.
No meio de uma conversa sobre essa mudança, surgiu a pergunta:
se tivessem transformado a Santa Sofia em uma igreja, você estaria tão triste assim?
Não sei de você, mas minha resposta é definitivamente sim. Além de triste, estaria muito envergonhada. Porque não é sobre fé, é sobre o que o que fazem em nome dela.
Não é sobre Deus versus Alah, porque foi justamente na Turquia que me disseram que é o mesmo Pai com filhos que conversam com ele formas diferentes. É sobre governos religiosos, suas as imposições e privações de direitos que começam com ações simbólicas e vão, aos poucos, dominando tudo.
Não respire aliviado pensando que essa realidade está distante do Brasil. Não está. Pra citar uma só evidência em meio a muitas, tivemos uma recente missão custeada com dinheiro público para evangelizar uma aldeia indígena isolada no meio da floresta. É um projeto. É imposição religiosa sufocando a cultura, minando a diversidade, tentando apagar a história.
O que estamos vendo na Turquia é uma face mais escancarada do que tem acontecido em muitos outros países: a ascensão do conservadorismo com religião como pano de fundo, independentemente de que religião seja essa. Está acontecendo debaixo dos nossos narizes. E não vai parar por aí. Vigia.