Viajantes, precisamos falar sobre Xenofobia

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Imagem: Markus Spiske

Esse é assunto sério, um tanto quanto denso, mas necessário pro momento em que este post está sendo escrito: o olho do furacão da pandemia de Coronavírus. E no meio disso tudo que está acontecendo, o nosso papo vai ser sobre xenofobia. Se você está me lendo agora é porque, provavelmente, você é uma pessoa apaixonada por viagens assim como eu. Então eu tenho que te dizer: nós precisamos conversar sobre xenofobia. 

Se você quer voltar a viajar depois que isso tudo passar, se você quer ser bem recebido por onde for, se você quer receber gente de fora, você precisa conversar com o máximo de pessoas possível sobre xenofobia e até o final desse texto você vai entender exatamente o motivo. Eu também vou compartilhar algumas dicas que venho aprendendo sobre como ter uma conversa desse tipo sem precisar partir pra briga.

Pra falar sobre xenofobia, vamos começar pelo caminho clássico de tratar uma palavra esquisita como essa que é procurar a definição dela no dicionário.  

Xeno em latim significa estranho e fobia é medo, então xenofobia é medo do que é estranho.

Segundo o dicionário Michaelis, a definição é:

1. Aversão ou rejeição a pessoas ou coisas estrangeiras: 

2. Temor ou antipatia pelo que é incomum ou estranho ao seu ambiente.

Já o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) diz:

“Xenofobia é um conjunto de atitudes, preconceitos e comportamentos que rejeitam, excluem e frequentemente difamam pessoas, com base na percepção de que eles são estranhos ou estrangeiros à comunidade, sociedade ou identidade nacional”.

Essa é a uma definição oficial pro que tem acontecido com bastante intensidade nos últimos meses. É claro que xenofobia não é uma coisa nova, existe há milênios, desde que povos diferentes começaram a se esbarrar pelo mundo. Mas o que essa pandemia tem feito com muita intensidade é trazer à tona as coisas que a gente precisa melhorar, superar e abandonar pra seguir nosso caminho como humanidade, e a xenofobia é  uma delas.

A violência que vem se espalhando junto com o vírus

No início desse caos todo, quando o Coronavírus começou a ultrapassar a fronteiras da China e se espalhar por outros países,  começou também uma onda de hostilidade contra orientais. Porque vamos combinar que é muito comum quem não é asiático ou que tem pouco contato com asiáticos tenha dificuldade de diferenciar chinês de japonês, de coreano, de taiwanês e por aí vai. Os olhos puxados são um padrão e, mesmo que haja muitas diferenças, a gente a costuma botar todo mundo na mesma caixinha e eu vou falar disso mais pra frente.

Você sabe dizer de onde eles são?
Foto de Tim Gouw

Mas pra dar um exemplo sobre a onda de hostilidade que eu mencionei, a primeira notícia de xenofobia que me chamou atenção foi uma da Revista Time,  que relatou o caso de um cara de 23 anos de Singapura que mora em Londres e foi cercado na rua por 4 homens que diziam que não queriam o coronavírus na Inglaterra. O menino foi espancado por eles a ponto de precisar de uma cirurgia pra reparar os ossos quebrados do rosto. E essa é só uma das notícias.

 

 
 
 
 
 
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Anti-Asian racism is on the rise, but people are working together to stop it.

Uma publicação compartilhada por ATTN: (@attndotcom) em

Depois do primeiro discurso em que o presidente americano Donald Trump chamou o Coronavírus de vírus chinês, aí coisa ficou feia mesmo. Os noticiários registraram um aumento de atos de violência física contra asiáticos nos EUA. Também teve um aumento do discurso de ódio contra essas pessoas detectado inclusive pelo Twitter. Além de tudo, essa fala do Trump também impulsionou uma teoria da conspiração que, provavelmente, já chegou nos seus grupos de WhatsApp e que voltou a ganhar força quando o número de mortos nos EUA ultrapassou, e muito, o número de mortos da China: a teoria que defende que o vírus tenha sido criado em laboratório pelos chineses para desestabilizar economicamente o resto do mundo porque, supostamente, só a China lucraria no meio da bagunça.

Caso as pessoas com quem você convive acreditem nessa história, ou caso você tenha alguma desconfiança em relação a isso, mais pra frente eu vou explicar porque essa teoria não faz sentido. Mas pensa… se as pessoas já estão agredindo asiáticos na rua só porque supõem que eles são chineses portadores do vírus, imagina o que pode acontecer se cada vez mais gente começar a acreditar que eles criaram essa pandemia intencionalmente? É uma ideia que pode ter consequências de extrema violência.

Porque teorias da conspiração viralizam com tanta facilidade

Existem várias teorias da conspiração sobre outras catástrofes, e conflitos e que todas elas têm em comum é que elas são narrativas interessantíssimas, são fascinantes, dariam um roteiro perfeito de um filme de vilões diabólicos, vítimas e heróis que mexem com a emoção da gente, bem nos momentos em que os ânimos estão mais à flor da pele, que são os momentos de crise. E, no caso do Coronavirus,  nós estamos em uma batalha contra um inimigo invisível. É muito difícil saber como agir quando a gente não consegue identificar de onde vem o perigo. Quando a gente não sabe o que fazer, a primeira saída é procurar alguém em quem por a culpa. E é isso que tá acontecendo agora. É uma necessidade profunda de dar uma cara pro inimigo.

Xenofobia e reconhecimento de padrões

É cientificamente comprovado que o cérebro humano procura padrões pra poder se organizar e se situar no mundo. Se você quiser entender um pouco mais sobre isso, eu recomendo demais uma série chamada Cosmos da National Geographic. Para assunto específico dos padrões, tem um episódio chamado When Knowledge Conquered Fear, no título original ou Quando o Conhecimento venceu o Medo, na tradução.

Ele fala que a habilidade de reconhecer padrões e categorizar as coisas a partir desses padrões foi crucial para a evolução humana. Por exemplo: diferenciar um predador de presa, planta venenosa de uma boa pra comer,  identificar de longe uma tribo inimiga. E aí já vem a minha interpretação: esse processo é muito baseadas no visual, no que a gente percebe a partir do que a gente enxerga. São padrões visuais que se repetem, a gente atribui significados a esses padrões e categoriza as coisas e as pessoas a partir deles.  

Tem uma fala nesse episódio do Cosmos que diz “O talento humano para reconhecer padrões é uma faca de dois gumes. Somos muito bons pra reconhecer padrões, mesmo quando não estão realmente lá. Algo conhecido como falso reconhecimento de padrões.”

Isso leva a gente a um monte de enganos e generalizações, criação de estereótipos que nem sempre são verdade.

Fazemos isso porque é muito mais fácil categorizar do que analisar detalhes e nuances. Isso dá trabalho, toma tempo, gasta muita energia e uma coisa que nosso cérebro em fazer é justamente evitar fadiga. Trazendo esse raciocínio pra forma como a gente olha para um povo, uma etnia ou uma cultura diferente da nossa, é bem mais fácil categorizar do que tentar entender a complexidade humana que cada pequeno grupo ou indivíduo tem.

Todo mundo tem ideias pré concebidas sobre as muitas culturas que existem no nosso mundo. Eu inclusive. É por isso que eu fico feliz demais quando algum paradigma meu se quebra e é isso que eu tenho fazer com quem eu consigo alcançar. É por isso o Outros Roteiros existe. Pra que a gente aprenda juntos a quebrar esses paradigmas. 

Pensamento global

Uma das coisas que eu imagino que pode acontecer depois que a pandemia acabar é muita gente migrando de países mais afetados economicamente pra outros menos, assim como aconteceu nos períodos pós-guerra da nossa história.  Foi que aconteceu com os refugiados da Síria mais recentemente. E onde tem imigrante costuma também ter preconceito, xenofobia e violência.

Uma indicação que eu quero fazer pra quem quer pensar um pouco mais profundamente sobre isso é o livro 21 lições  para o Século 21, do Yuval Noah Harari aliás, obrigada Pedro Drable, que me recomendou essa leitura e que tem um podcast sensacional chamado Caixa de Nada. Você que está me lendo, ouça.

Mas, voltando ao 21 lições, é um livro fantástico que entre muitas outras coisas fala que estamos lidando cada vez mais com problemas globais – a destruição do meio ambiente, disrupção tecnológica e os fluxos migratórios por exemplo. São problemas que afetam o mundo inteiro e as atitudes que a gente tem, as decisões que a gente toma num lugar impactam os outros lugares, as outras pessoas, próximas ou muito distantes. Não dá gente pra ficar com um pensamento isolado como se  outras culturas não existissem ou não influenciassem nossa, exatamente como tá acontecendo agora.

Uma coisa é muito clara: xenofobia e outros tipos de preconceito estão ligados à ignorância, falta de estudo, de instrução.

Porém, o que soou o alarme e se tornou o principal motivo para que eu levantasse essa bandeira foi o fato de que eu vi e ouvi pessoas do meu círculo social, com boa base de educação e acesso à informação, gente da minha família, amigos que eu considero que têm bom senso e bom coração propagando discursos xenofóbicos. Vou dar um exemplo: “a China tinha que sumir do planeta” “Esse bando de chinês tem que pagar caro por essa pandemia.” entre outros absurdos que eu andei ouvindo.

Como abrir um diálogo com quem está com esse tipo de pensamento?

Você vai precisar de:

  • empatia
  • humildade
  • fatos

E depois empatia de novo. Vou explicar: Empatia porque, a pessoa que defende um ponto de vista com raiva (eu estou falando de raiva, não de convicção) muitas vezes está usando a raiva pra encobrir um medo. E, nesse caso, nos tempos que estamos vovivendo, é medo de morrer e/ou medo de falir e perder tudo. São dois medos muito legítimos. Só de olhar dessa forma pro nosso “oponente” no debate a gente já se abastece de paciência.

Aí vem a humildade pra ouvir o que o outro tem a dizer, baixar a guarda e considerar que talvez ele até esteja certo em alguns pontos. Depois, é hora refutar ponto a ponto, com muito respeito e fatos. 

Então, vamos aos fatos. 

Pra quem acredita que essa pandemia tenha sido criada intencionalmente pela China, você pode e começar a conversa assim, por exemplo, preenchendo o espaço abaixo com o nome do seu querido/a propagador de fakenews:

Oi, ______________! Que bom você levantar esse assunto. Pelo que tô entendento você está com raiva e assuntado com tudo o que tem acontecido, assim como eu. Tenho pensado muito a respieto e, pelo que eu tenho lido,  não vejo sentido na teoria de que o Coronavírus tenha sido criado em laboratório pelos chineses, porque eles estão enfrentando, nesse momento, a maior recessão da história deles nos últimos 30 anos, como você pode conferir aqui nessa matéria da BBC. A China teve que parar a produção e exportação de produtos já no início do ano porque o povo lá tava morrendo a rodo.

Só isso já fez um rombo na economia deles. E no longo prazo, o que acontece quando os países compradores dos produtos chineses entram em crise é que eles param de comprar supérfluos, como o seu iPhone, por exemplo, e esse monte de produtos de marca renomada ou não que estão em todo os lugares e são produzidos na China. Isso prejudica a economia da própria China também. Até que todo mundo se recupere, eles estão igualmente lascados, assim como nós.

Outra coisa que eu li é que existem fortes evidências que o vírus tenha vindo de animais silvestres, morcegos e pangolins, como afirma um virologista da USP expert em coronavírus, chamado Paulo Eduardo Brandão. Inclusive tem um estudo publicado na revista Nature de antes da pandemia acontecer, falando sobre isso e tem um outro estudo assinado por um virologista da Universidade de Sydney Austrália. Ele afirma que o coronavírus foi encontrado nos morcegos e pangolins na região de Wuhan.

Aí vem sua amiga ou amigo “gratiluz pero no mucho” falando “mas que cultura podre essa que consome animais selvagens.” Aí você rebate assim:

____________, os animais que amplamente são consumidos na nossa cultura um dia também já foram selvagens. Inclusive, as outras grandes epidemias e doenças seríssimas vieram do contato do homem com animais que a gente vê em qualquer fazenda, como é o caso da gripe espanhola que passou de porcos para seres humanos nos EUA. O sarampo, que veio das ovelhas… e você lembra da gripe aviária? Veio de galinhas e perus. E a doença da vaca louca que inclusive deixou a carne brasileira muito mal vista lá fora durante um bom tempo. Então, não é a cultura X ou Y que é podre. É o mundo inteiro que precisa rever o consumo de animais. De novo, é um problema global. 

Uma possível solução

Não é que eu acredite que a China esteja isenta de responsabilidade ou não precise endurecer as regras em relação aos mercados vivos de animais selvagens. Mas também não sei se é o caso de proibir de imediato porque é um costume de muitas pessoas de lá há muito tempo, desde a época da Grande Fome por conta da política de controle da distribuição dos alimentos nas comunas agrárias. E o que acontece quando você proíbe uma coisa que é hábito ou vício? Você cria um mercado ilegal e paralelo, você estimula tráfico, sem fiscalização, com ainda menos higiene. O itens proibidos ficam ainda mais desejados, só pelo fato de serem proibidos. Então eu acredito que a solução é virá no longo prazo, com campanhas de conscientização que vão levar um tempo até que tenham efeito na demanda por esses animais. 

De qualquer forma, não faz sentido criminalizar uma etnia, uma população inteira como se só por terem nascido na Chima eles fossem automaticamente todos devoradores de animais da floresta e culpados de tudo o que está acontecendo. Inclusive tem um estudo divulgado em 2014, pela Springer Science+Business diz que 52,7% dos chineses entrevistados não consomem animais silvestres e desaprovam esse consumo. Aí que entra a empatia de novo: se coloca no lugar do outro.  Poderia ser com a gente.

Poderia ser com você

Aí você viajante talvez pense: ah, mas eu não tenho vontade de ir pra China. Também não tenho cara de asiático, então tá de boas. Não. Não tá. Até algumas semanas atrás tinha um grupo de brasileiros criadores de conteúdo de viagem inclusive, junto com europeus que estavam cercados num acampamento, sendo ameaçados na Costa do Marfim porque, como o epicentro da pandemia naquele momento estava na Europa, o povo da comunidade bateu o olho neles e pensou: cara de europeu = Coronavírus. Mesmo eles tendo como provar que estavam na África fazendo trabalho voluntário muito antes da pandemia estourar, as pessoas da comunidade estavam com medo e ódio deles por supostamente terem levado o vírius pra lá. Graças a Deus, os viajantes conseguiram uma escolta com a embaixada e foram embora do acampamento onde estavam. Mas dá pra imaginar o que poderia acontecer se eles não tivessem conseguido sair. Esse é mais um sinal xenofobia está generalizada e vai ficar assim ainda por um bom tempo.

Depois que tudo isso passar

Assim que for oficialmente seguro viajar de novo, eu tenho pra mim nós vamos nos dividir em dois tipos de pessoas: as que vão se jogar no mundo e as que ainda vão se resguardar por medo. Um medo residual, porém muito forte.

Vai ter gente que vai sair da gaiola no primeiro segundo e vai ter gente que vai desaprender a voar. Por medo.

E é com pessoas cheias de medo que a gente vai ter que lidar. É com a pessoa medrosa e ignorante, preconceituosa que mora dentro da gente também. E essa pessoa que classifica os outros pela origem, pela aparência. É esse aspecto da gente que a gente tem que melhorar.  E muito.

Pra você entender porque esse assunto de xenofobia me pega tanto, em 2017 eu fiz um exame de DNA de ancestralidade e descobri que o que eu sabia da minha origem era só 40% da verdade. Eu sou 40% descendente de portugueses e espanhóis. Mas da metade dos meus gens vem de lugares que eu não tinha ideia. Eu sou o resultado de uma mistura de 14 etnias diferentes. Tem Península Ibérica, tem grécia e itália, Gran Bretanha, África, América Nativa e até Polinésia, pensa só. Isso me fez ficar ainda mais convicta de que não existe raça pura, não existe superioridade de um povo ou de outro. É todo mundo farinha do mesmo saco, no melhor sentido que essa expressão pode ter. Você aí já pensou se sabe mesmo toda a verdade sobre a sua origem? Talvez você seja tão miscigenado quanto.

Talvez isso explique a nossa gana de viajar. Acho que é uma boa teoria.

Vê se você concorda comigo: quanto mais a gente avança na tecnologia e na ciência, quando mais acesso a conhecimento a gente tem, quanto mais oportunidade de viajar e ter contato com que é diferente, menos espaço sobra pra o preconceito nesse mundo.

É isso! Espero ter conseguido esclarecer alguns pontos sobre xenofobia e espero ter ajudado você a se tornar uma pessoa pacificadora nos seus grupos de WhastApp porque é bem isso que eu tô me esforçando pra ser e eu quero companhia.

Esse post foi adaptado no episódio #5 do Podcast Outros Roteiros que você pode ouvir aqui

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